Sergio Cruz Lima
Maria Doida
No Rio de Janeiro, nas primeiras luzes do Brasil-República, vivia uma mulher parda, viúva, de mais ou menos 50 anos, apelidada Maria Doida. Ela vestia sempre um vestido chavascado, usando constantemente dois longos cachos de cabelos finos, ralos e grisalhos, que contrastavam sensivelmente com a sua cabeleira dura e renitente de verdadeira mestiça. Dizia-se que a pobre mulher perdera a razão em consequência de lhe terem roubado algum dinheiro deixado pelo marido. Seja como for, a infeliz andava de casa em casa, visitando esta ou aquela família, passando dias aqui e ali, comendo, bebendo e dormindo onde a levava a fortuna.
Andarilha e vesânica, Maria Doida vestia três ou quatro saias, duas camisas e igual número de pares de meias, jamais dispensando uma trouxinha com as demais roupas de uso, visto que o seu pouso era incerto. Fechado na mão, trazia um embrulho de papel contendo rapé e, nas pitadas, a sua liberalidade desconhecia limites. Apenas chegava a uma casa conhecida, depois dos salamaleques e massadas de estilo, de almoçar ou jantar, Maria dirigia-se ao quintal, abria a trouxa, trocava a roupa suja, pedia sabão, e lavando o enxoval o estendia em cordas nos corredores, nas áreas, nas janelas, sempre falando e cheirando o usual rapé.
Em meio aos desarrazoados, Maria saía-se com pilhérias que seriam capazes de fazer rir aos mortos. A garotada cercava-a; as moças divertiam-se à sua custa; as donas de casa ficavam de sobreaviso com as suas levadas. Não obstante, ela era estimada, acatada e zelada. Abstração feita de sua vida errante, de sua bagagem portátil, de albergar-se em casas alheias, o lado mais característico de sua alienação eram os repentes chistosos, as frases equívocas que lhe brotavam de improviso, desapontando o sexo frágil que a escutava.
Um dia, Maria Doida, que passava a semana com família conhecida, investe pela escada do quintal, aproxima-se da dona da casa, que se acha na varanda com suas filhas, e lhe fala, toda ouriçada: "Sinhá dona, sabe de uma coisa? O seu peru me galou!" Indignada, a dona da casa contesta: "Pelo amor de Deus, deixe-se de inconveniências.." Meditabunda, Maria responde-lhe: "Eu estava agachada, lavando os meus paninhos, e veio o seu peru... arrastou a asa... trepou no meu ombro... e batendo com o bico na minha cabeça, fez toc!" Escandalecidas, mãe e filhas esboçam contido sorriso. "Já vê, pois, que seu peru me galou!", remata Maria.
Este é um dos muitos casos contados por Maria Doida, que já fez sua última visita ao domicílio onde se entra com os olhos fechados para não se abrirem jamais!
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